sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A transmissão dolosa da AIDS.



É plausível a tese de que a contaminação incorreria o portador transmissor no crime de tentativa de homicídio; caso haja morte do contaminado, o crime então consumar-se-ia.http://jus.com.br
Olívia Costa Lima Ricarte
Advogada em Boa Vista (RR). Pós-graduanda em Direito Constitucional.

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida: este é nome oficial, adotado pela comunidade científica, que identifica, no rol das doenças, a AIDS. Para quem a conhece de perto, a tradução vem em forma de doenças oportunistas, silenciosas, acompanhadas de um diagnóstico assustador. O ataque sorrateiro do vírus HIV no organismo do contaminado só não é pior do que uma coisa: o preconceito que vem como “brinde”. Conviver com uma expectativa de vida natural diminuída, não se sabe por quanto tempo, esperar pela manifestação dos sintomas, temer qualquer sinal de gripe – pensando que pode ser o princípio de uma pneumonia ou tuberculose, ficar preso o resto da vida a drogas experimentais e à companhia constante do fantasma da morte deve certamente ser no mínimo comparável à sensação de exclusão, à de estar inserido no estigma de “incurável”.

Embora hoje a ciência tenha evoluído bastante, infelizmente a cura ainda não chegou. Por mais eficazes que sejam os coquetéis, por mais que a expectativa de vida dos contaminados aumente a cada dia, a AIDS ainda é considerada mortal. É triste dizer que, mais cedo ou mais tarde, o portador não conseguirá vencer os males acarretados pela sua baixa imunidade.

Obviamente, isso ocorrerá com todos nós: um dia, todos vão morrer, e não temos como evitar. Todavia, quando existe embutido no organismo um vírus incurável, a morte se torna uma infeliz determinante, e o indivíduo vive em função de um amanhã incerto e obscuro, mais do que aquele que não é portador. É como se vivesse à beira do precipício, podendo despencar a qualquer momento, e a paz se faz distante de seu âmago.

Baseada nesta idéia, de que o individuo contaminado vive lado a lado com a angústia, é que a sociedade vem se solidarizando com a causa. Desde os tempos da descoberta da doença, no início da década de 1980, não faltam ONGs, políticas públicas e programas de conscientização, no sentido de evitar a propagação do vírus, bem como informar sobre a convivência com este, no período pós-contágio. E, como não podia deixar de ser, os poderes públicos, impulsionados pelo clamor social, vêm cada vez mais se mobilizando para empregar as idéias fermentadas no seio da sociedade. É a força do povo que move o Estado, bem se sabe; é de pilar importância que aquela se manifeste em prol da observância da qualidade de vida do contaminado, sem a qual evoca-se inevitavelmente um problema de saúde pública – dado o caráter de epidemia que hoje reveste a propagação da AIDS.

Há que se frisar que o Estado de Direito, embora dinâmico, é de natureza intrinsecamente reativa; ele funciona em resposta ao impulso social. A sociedade, por sua vez, é a mola propulsora e, seus anseios, a energia para a propulsão. Ou seja, é uma cadeia circular: a sociedade deseja, exige; o Estado reage e responde; e esta resposta se reflete na própria sociedade. Seguem algumas colocações da civilista Maria Helena Diniz, que ajudam a chegar a uma melhor percepção:

Percebe-se que o Direito só pode existir em função do homem. O ser humano é gregário por natureza, não só pelo instinto sociável, mas também por força de sua inteligência, que lhe demonstra que é melhor viver em sociedade para atingir seus objetivos. O homem é essencialmente coexistências, pois não existe apenas,mas coexiste, isto é,vive necessariamente em companhia de outros indivíduos. Com isso, espontânea e até conscientemente, é levado a formar grupos sociais.

Como o ser humano encontra-se em estado convivencial, é levado a interagir; acha-se sob a influencia de alguns homens e esta sempre influenciando outros. E como toda interação perturba os indivíduos em comunicação recíproca, para que a sociedade possa conservar-se é preciso delimitar a atividade das pessoas que a compõem, mediante normas jurídicas. (DINIZ,Maria Helena. - , p. 242;243)

No âmbito do Poder Judiciário, enfoque especial deste artigo, grande tem sido o avanço no sentido de viabilizar os direitos dos portadores de HIV/AIDS, muitas vezes ausentes de nossa legislação, não por esquecimento do legislador, mas por defasagem temporal das leis vigentes e demora no processo de atualização por meio de novas leis. O nosso Código Penal, por exemplo, data de 1940, época em que não havia incidência da AIDS, ou, conforme for, não havia esta sido descoberta até então.

Entretanto, o Direito, como bem se sabe, não é uma ciência exata, e permite, na busca do justo, que se utilizem vias alternativas. E assim as chamadas fontes formais do Direito, encabeçadas por seus princípios gerais, e as formas de auto-integração da lei, como a equidade e a analogia, respectivamente, bem como os seus desdobramentos, como a interpretação extensiva, acrescentam forças à luta pela dignidade daqueles que, diante das circunstâncias, já perderam tanto.

É cediço que, se houver realmente uma vítima no contexto da epidemia, seria o portador do vírus; é ele, afinal, quem vive a peleja. Porém, a natureza do ser humano é falha, passível de se corromper frente a sentimentos menores, como o ódio, o rancor, a vingança. É sob este prisma que o presente discurso se desenvolve. Quando o portador passa de vítima a vilão, querendo disseminar a epidemia dolosamente, ou seja, de forma consciente, como puni-lo? Qual a posição da sociedade frente a este comportamento? Como os operadores do Direito, agindo em reflexo ao impulso social, têm se manifestado a respeito?

Enquanto aguarda a edição de novas leis, já em tramitação há tempos, por sinal, a comunidade jurídica tem se preocupado com esta problemática. Diante da omissão legislativa, juízes e juristas têm se apegado principalmente à analogia para resolver dissídios pendentes. A transmissão consciente, de forma dolosa, do vírus HIV, talvez não seja a única questão a ser debatida, mas, no âmbito do direito penal, certamente é a mais inquietante. Isso porque a discussão se acalora diante do impasse que nem mesmo a medicina parece resolver de forma pacífica: A AIDS é ou não uma doença mortal? Uma vez que ela é uma moléstia incurável, seria a transmissão consciente uma tentativa de homicídio, ou mesmo um homicídio propriamente dito, haja vista que o individuo irá padecer e falecer finalmente, mesmo que os coquetéis prolonguem sua vida?

Hoje, a doutrina especializada e o comportamento dos tribunais se direcionam no sentido de que o mais viável seria enquadrar a conduta como sendo o delito descrito no artigo 131 do Código Penal, que se refere ao crime de perigo de contágio de moléstia grave- a AIDS não é considerada doença venérea, dada a variedade dos veículos de contaminação, cuja pena é a de reclusão, de um a quatro anos, e multa. O artigo, porém, só alcança o perigo de contágio.

Os penalistas, em sua esmagadora maioria, hoje, acreditam que, caso ocorra a contaminação, a conduta de transmissão, de forma dolosa e consciente do vírus HIV, configura o delito descrito no artigo 121 do Código penal - homicídio. A partir desta linha de raciocínio se desenvolvem outras tantas, como bem nos lembra o jurista João José Caldeira Bastos: “Há jurisprudência para todos os gostos. Com uma boa retórica se consegue justificar, inclusive, até uma nova categoria de homicídio: ‘Homicídio qualificado-privilegiado!’” (BASTOS, João José Caldeira. 2008, p.122). Vejamos, primeiramente, as que pertencem a correntes menores de pensamento.

Quanto à forma de execução do crime, o Código Penal arrola algumas que causam aumento pena, por serem consideradas mais gravosas. São as chamadas qualificadoras. Nelas estão compreendidas, por exemplo, o motivo cruel, insidioso, o torpe e a dissimulação, lembrados, respectivamente:

O meio cruel parece mais adequado, pois, sabendo-se que a AIDS é fatal e que certamente trará sofrimento para a vítima, o agente que quer sua morte através da transmissão da moléstia, aumenta desnecessariamente o sofrimento daquela, revelando sadismo fora do comum, contrastando com os sentimentos de dignidade, de humanidade e de piedade. (HAGA, Simone Cristina Hakemi. Da transmissão da AIDS e sua tipicidade no código penal Brasileiro. 2002, p. 50)

A questão que aqui se argumenta, é a de que a AIDS seria meio insidioso ou cruel. Acredita-se que a transmissão da AIDS é um meio cruel,haja vista que, tal doença é fatal e que trará sofrimento à vítima,onde com a transmissão o agente revela um sadismo fora do comum,contrastando com os sentimentos de dignidade, humanidade e piedade.( BECHELANI, Adelita aparecida. Aspectos penais e da bioética na transmissão do vírus HIV. 2003, p. 66,67.)

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