Orwell: infelizmente, estava certo. Foto: AP
Frases feitas afirmam-se periodicamente. Depois da queda do Muro de Berlim vingou a ideia de que também ruíra a ideologia como se a nova crença não fosse altamente ideológica. No momento, se você observa que nem tudo no Brasil anda às mil maravilhas, ouvirá de bate-pronto que o mundo inteiro está em crise. Alguém acrescentará: nesta moldura de franca decadência, até que nós estamos em condições menos graves. Em parte, é verdade. Factual, como indicam os índices de crescimento do País, ainda bastante razoáveis.
No imanente e no contingente, verdades factuais de diversos pesos têm de ser registradas, a começar pela crise econômica e financeira e pelas responsabilidades dos senhores da Terra, impávidos na repetição dos erros que provocaram o desastre de 2008 e que, três anos depois, precipitam a recaída. Recaídas sempre agudizam a doença.
Há, em contrapartida, os avanços científicos e tecnológicos. São passos importantes, e mesmo assim têm duas faces como Janus bifronte, e se prestam a aprofundar as desigualdades, em um mundo que se povoa de velhos nos países ditos ricos e cresce à desmesura nos países pobres. Somos hoje 7 bilhões de terráqueos e seremos 10 bilhões em poucas décadas. Pergunta óbvia e imediata: haverá comida para todos? Surgem, porém, outras perguntas, igualmente pertinentes: qual será o tamanho da contribuição desse aumento populacional ao desequilíbrio ambiental? Previsões sombrias: as temperaturas crescerão 4 graus. Ah, sim, vai faltar água.
Estamos de acordo quanto ao fato de que George Orwell foi um infatigável pessimista. Leonardo da Vinci imaginou o helicóptero, Verne o submarino, Orwell o Grande Irmão, a nos espreitar dia e noite. Os três anteciparam os eventos. Propuseram o teorema e o provaram. Talvez valha considerar como a evolução tecnológica e a chamada cultura de massa acabaram por dar razão a Orwell. A humanidade bombardeada pelas versões midiá-ticas comandadas pelos Murdoch da vida, titulares e aspirantes, espionada até nos recessos mais recônditos, tolhida fatalmente à prática do espírito crítico, emburrece em progresso inexorável.
O seguinte quesito exige uma resposta rápida: anima-nos constatar que líderes globais se chamem Cameron, Sarkozy, Obama, Berlusconi, Merkel etc. etc.? Houve tempos melhores, e eis mais um sinal da decadência, sem falar de Trichet, Bernanke e companhia. Sim, o mundo é cada vez mais medíocre, para não dizer incompetente. Inepto em geral, e mesmo na inépcia, desigual. Não me refiro, está claro, à desigualdade econômica e social ou mesmo estética, como se tivesse a pretensão de comparar o Sambódromo carioca com o Coliseu, a anacrônica Sé de São Paulo com a Catedral de Chartres.
Jean Clair, o mais importante crítico de arte francês, acaba de publicar um livro em que investe contra a chamada arte contemporânea. Digamos, ao acaso, a do inglês Hirst, que vende por 12 milhões de dólares um cadáver de tubarão mergulhado em um cubo de vidro cheio de formol, a fingir uma intacta ferocidade. Clair denuncia os assassinos da arte, de fato mestres em marketing. Na Europa, instigado pela própria crise, desenrola-se um intenso debate sobre a validade de empulhações variadas propostas por bienais e outras tertúlias pretensamente artísticas, e sobre os preços impostos pelo mercado em delírio. Por aqui, continuamos a importar vezos, modas, besteiras inomináveis.
O Reino Unido produz uma televisão como a BBC, aqui é a treva. Quem se der a comparar os jornalões nativos com The Guardian ou o La Reppublica não poderá deixar de cair em depressão. Também não são nativos os irmãos Coen, Seamus Heaney ou Philip Roth. Em compensação os nababos brasileiros, sobretudo paulistanos, assemelham-se aos emires do Golfo, e um dos países de pior distribuição de renda do mundo baseia em São Paulo a segunda maior frota de helicópteros do globo.
A maioria dos brasileiros não possui a consciência da cidadania e até hoje 1% da população é dona de 50% das terras férteis. Temos um povo resignado e uma elite, salvo raras exceções, exibicionista, ignorante, mal-educada e terrivelmente provinciana. Não é assim em outros cantos, e são estes pontos que convém ressaltar se o assunto é a desigualdade global. E o Brasil, sempre para ficar nos exemplos, é também o país onde um assassino contumaz como Cesare Battisti recebe asilo e, no momento, do Ministério da Justiça os documentos que o habilitam como livre cidadão a viver e trabalhar entre nós.
Não é por acaso que quaisquer estudos, pesquisas e estatísticas sobre o ensino no Brasil exibem a precariedade do próprio. No fundo, o Caso Battisti é, antes de mais nada, a prova de uma enorme, abissal ignorância, exibida à larga, até com empáfia, em nome da soberania nacional. Avulta a ignorância de autoridades, juristas e juízes (?) que ao enfrentarem o problema nem se dignaram a inteirar-se da história da Itália do pós-Guerra.
Encerrado o lamentável capítulo, na esteira acaba de vir a derradeira decisão: turistas italianos poderão permanecer 90 dias por ano, improrrogáveis, em lugar dos 180 dias anteriores, proporcionados a todos os europeus. Soa como represália aos protestos de Roma, retoque final à altura da história toda.
Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redacao@cartacapital.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário