De Maquiavel a Hannah Arendt em "Os afogados e os sobreviventes"
A partir da leitura sistemática da obra "Os afogados e os sobreviventes", busca-se encontrar as ideias e pensamentos defendidos por pensadores políticos como Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke, Tocqueville, John Stuart Mill, Hannah Arendt, Alain Touraine e Antonio Gramsci.
A leitura de Os Afogados e os Sobreviventes nos convida a compreender a singularidade pela qual se manifesta o fenômeno da violência. A literatura de testemunho, produzida pelo sobrevivente Primo Levi, busca por meio de sua memória representar a realidade de quem passou pelo campo de concentração, desmistificar a imagem dos campos de extermínio, permitindo discernir entre distintas formas de violência. Dialoga perfeitamente com pensadores políticos desde Maquiavel, passando por Antonio Gramsci até chegar a Hannah Arendt, (re) desenhando perfeitamente seus discursos. Campos de prisioneiros, campos de concentração, presídios, masmorras, penas de trabalho escravo ou forçado são, muitas vezes, ainda confundidos. A compreensão da peculiaridade do fenômeno dos campos de concentração (Lager) possibilita o conhecimento de uma face da modernidade que, sustentada pela fé cega na razão, na neutralidade da técnica e no progresso de supostas leis históricas, produziu milhões de cadáveres. O testemunho de Primo Levi é uma contribuição para evitar uma típica separação operada pela modernidade: entre conhecimento e pensamento, entre ação e reflexão, entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa. Mais de 60 anos nos separam dos campos de extermínio existentes durante a Segunda Guerra Mundial. Todavia, enquanto o tempo parece encarregado de banalizar o mal, a memória busca apagá-lo. Ninguém pode assegurar à humanidade que a inaudita brutalidade dos campos de concentração foi sepultada de uma vez por todas. Ocorrerão outros extermínios em massa? Auschwitz retornará? A eliminação física, mental e simbólica de grupos étnicos ou religiosos cessou?
Estudiosos que viveram o Estado (sua estrutura e formação); sofreram represália, pressões daquele sistema e fomentaram questões acerca da realidade, da conjuntura que os circundava. Homens a frente de seu tempo que conseguiam romper os antolhos do sedentarismo e do senso comum, passando a enxergar caleidoscopicamente e não por espelho, em enigma.
Em sua obra – Os afogados e os sobreviventes – Primo Levi apresenta (de maneira deveras peculiar) o cenário com o qual se defrontava: Alemanha no III Reich – período que antecedera a República de Weimar – governada pelo totalitário Adolf Hitler, deflagrando as atrocidades que por este foram realizadas ao longo do negro e sangrento período do nazismo, que fora, por sua vez, subsumido na execração de homens – diz-se homens e não raças, não só nos resguardando o direito de não empregar indevidamente o vocábulo, mas também pondo em evidência a realidade em voga, qual seja o extermínio de seres humanos –, no massacre de vidas inocentes que se viram esfaceladas pelos ditames de um poder cuja índole era desconhecida. Almas que se viram a si mesmas tendo sua dignidade depredada, estuprada, deflorada violentamente por um vento tempestuoso, obscuro e desconhecido.
Assim, num falar ora melancólico, condoído, revoltado ora orgulhoso, confiante, otimista, o autor vai desvelando toda uma sequência de fatos que se entrelaçam de modo a formar apenas a ponta do iceberg do que realmente consistia o nazismo (ou seria hitlerismo [1]?) aclamado como o nacional-socialismo alemão. Cada fala, comentário, recordações de momentos vividos no Lager [2] deflagra detalhes que nos forçam a refletir e/ ou inferir a respeito de que justificativa leva um ser humano (ou poder) a ultrapassar as barreiras do jusnaturalismo e, movido pela vontade própria e por autodeterminação enumerar, estereotipar quem serve e quem não serve; quem é superior e quem é inferior, sendo a morte o galardão daqueles que estão fora do padrão. Destarte merece destacar que, na concepção dos adeptos ao modelo totalitário, a morte era um favor para aquele grupo de seres subumanos, afinal, tratava-se de anomalias que deveriam ser execradas da sociedade.
Além disso, não estava morrendo gente, senão judeus. Perda da dignidade, dos direitos humanos, abatimento de vidas, animalização, coisificação, fanatismo, nacionalismo exacerbado são realidades vigentes em Auschwitz e nos outros campos de concentração onde a ideia de valores humanos era desconsiderada em virtude das idiossincrasias do modelo hitleriano. Questões levantadas pelo autor ex-prisioneiro e sobrevivente do Lager de Auschwitz que penetram no seio do leitor, fazendo o olhar para si mesmo e ao seu redor a fim de que melhor possa avaliar o que de fato tem importância nessa vida – fato que só se legitima quando se é privado de ser humano e, muito pior, quando se chega a esquecer do que (e de quem) realmente é em virtude de opressões e imposições que são outorgadas e executadas por um poder e/ ou domínio que perpassa os limites da compreensão, levando os passivos à opressão a desconhecerem as razões de estarem sofrendo os efeitos desse mesmo poder e, no final, apenas lutarem instintivamente pela sobrevivência – direito à vida – com todos os direitos que o verbo requer – sem ser dela privado.
A presente análise propõe – além do diálogo com os pensadores políticos que é o objetivo principal, o cerne que a norteia – uma reflexão da Política enquanto instrumento de poder e como veículo fomentador de paz ou guerra (ou paz e guerra), objetivando chegar a uma conclusão que perpetre um pensamento pró-ativo e crítico da realidade ao seu redor e derredor e não embasado pelo senso comum, rompendo, por conseguinte, as barreiras da mediocridade a que está alicerçado esse tipo de pensamento e aqueles a que dele são adeptos.
Nosso discurso se coaduna à obra de Primo Levi que apresentamos anteriormente e que será utilizada como matiz teórico, bem como às ideias desenvolvidas pelos pensadores políticos apresentados em Clássicos da Política, buscando-se dialogar entre ambos no desenrolar e desvelar de nossa argumentação, visando à efetivação dos objetivos propostos. Para fins de esclarecimento e melhor compreensão da leitura a ser apresentada utilizar-se-á nas citações as abreviações: PL In: OAOS (Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes) e In: CP (Clássicos da Política), facilitando-nos o entendimento ao nos referirmos às obras em questão.
Cabe reiterar que, no desenrolar da análise, estará presente em nosso discurso um cabedal de conhecimento e ideias oriundos das aulas de Política que não poderia estar de fora em virtude da grande contribuição que nos proporciona, haja vista que só se torna possível a temática que nos propomos analisar pelo conhecimento prévio sobre o assunto amparado pelas questões desenvolvidas e/ ou levantadas em sala de aula do componente curricular que norteia nossa presente argumentação.
Muito se sabe, através de contribuições de autores diversos, sobre o horror que fora perpetrado contra os judeus na ocasião da Segunda Guerra Mundial. Todavia, nada comparado a relatos de alguém que vivenciou o terror dos Lager nazistas, que respirou o pó das cinzas de vidas dissipadas, que sentiu na pele a frigidez da morte iminente a cada segundo. Esse pensamento só nos fora possível graças a Primo Levi, que num falar despido de eufemismos e omissões, nos traz a realidade nua e crua do modelo totalitário – diria hitleriano – de estado.
Segundo Alain Touraine, não é através do individualismo que nos será permitido a compreensão de um movimento social – tomemos o modelo totalitário e/ ou hitleriano como exemplo –, senão da participação – lembremos também do antropólogo Malinowski e sua teoria da observação participante, em que só se é possível compreender uma dada realidade se dela for parte integrante – como fizera o autor de Os afogados e os sobreviventes que se tornou uma raça caída, podendo compreender a amplitude e intensidade desse contexto.
A presente análise pretendeu encontrar e dialogar com os pensadores políticos que estariam (e estão) introjetados no discurso de Primo Levi. Vale ressaltar que a plausibilidade do diálogo entre os autores de épocas distintas de cruzam, se entrelaçam, formando um todo coeso e verossímil. E a maneira que se deflagra esse encontro cobre de sentido toda a nossa análise e da Política em si, por conseguinte. Destarte merece destacar, que todos deixaram contribuições indeléveis e que não se pode elucidar qual dos autores seria atual e qual seria ultrapassado, haja vista que todos são possíveis de serem encontrados nas falas mais atuais. Além do fato de terem deixado conceitos que, ao serem tomados, nos remete aquele pensador.
De tudo que fora argumentado até aqui, e que merece atenção, é o fato da vida humana ser preciosíssima acompanhado, é claro, da dignidade que é correspondente direto da vida. Seja qual for o sistema político em voga a Lex naturalis deve ser preservada. Outra questão que merece atenção é que não indivíduo melhor ou pior – usando como critério de valoração nacionalidade, cor, credo, sexo – lei tem que haver, governo tem que haver, porém não há nada que determine que um povo esteja acima do outro. É possível ser mais rico, desenvolvido, mas ainda assim não o torna melhor do que outro, uma vez que as oportunidades estão abertas a todos. Os caminhos são infindos, basta que se escolha um.
O ser humano é o bem maior que existe, não devendo, pois, ser animalizado, coisificado, nem tampouco exposto ao ridículo. Muito pelo contrário, sua vida deve ser zelada, garantida e protegida.
Através da análise em questão, pudemos depreender que não se deve deixar deturpar pelo poder. Este tem o poder de dominar aquele que o possui, fazendo com que não mais pense por si próprio, sendo dele dependente. Nessa ocasião, os efeitos são avassaladores, como num vício. E pior. Não se pode voltar atrás. A consequência é a aniquilação realizada pelo próprio poder que – como ressalta Maquiavel – quando não é mais saciado – e aqui adaptamos o conceito do pensador – expulsa a fortuna do indivíduo que, desafortunado, vende sua dignidade por qualquer preço e, com ela, sua vida. O perigo da exacerbação do poder é ser por ele consumido. E isso se dá quando não se resta mais quem consumir. O poder desmedido tem sede. Sede de sangue. Faminto de morte e não poupa quem atravessa seu caminho, mesmo que seja seu executor, seu hospedeiro intermediário. Provavelmente, o totalitário não dorme – se nos permite a alegoria – pois pode ser pego desprevenindo por seu maior inimigo: ele mesmo que personificado pelo poder passa a ser vilão de si próprio. Não há escolha. É um pacto de sangue. Sangue este que mata a sede do poder (deturpado).
Há uma medida para todas as coisas e esse fato é o que nos livra de armadilhas que nós mesmos podemos armar (ou permitir que sejam armadas) em nosso caminho. Assim se deve proceder com o poder. Este não deve personificar o estado ou perder-se-á o controle da situação, passando a enxergar as atrocidades, o terror como algo banal, rotineiro. Disso segue-se o desconhecimento de si mesmo, a perda de identidade, o distanciamento do sentir de ser humano e, por conseguinte, autodestruição.
Buscam-se governantes centrados, preocupados com o bem estar social, uma vez que são representantes do povo, convictos de seus deveres para com os subordinados, desprendido do Self normalizado para o sujeito ativo, empreendedor de políticas sociais, aberto a críticas e sugestões, enfim, um político conhecedor de suas possibilidades e de seus limites. Em contrapartida, buscam-se governados cidadãos conhecedores de sua cidadania, formadores de opinião, livres para se comunicar e expressar e confiantes de que seus direitos não estão e nem vão ser violados. Não se deve pensar em distanciamento dominante/ dominados estes não devem ser opostos, mas coparticipantes. Deve-se sim pensar em aproximação para que os papeis sejam desempenhados com eficácia.
Crédito:
Horácio dos Santos Ribeiro Pires
Jus.com.br
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