Sobre o voto obrigatório
Quando falam em reforma política, os políticos e os cientistas políticos brasileiros seguramente não colocam a obrigatoriedade do voto entre os dois ou três principais itens que a integram. Tendem, isso sim, a compor sua agenda prioritária com questões que pertencem a um registro aparentemente mais elevado, aquele que se refere às instituições e a seu funcionamento. Contudo, não é esse o ponto de vista dos eleitores. Se nos dirigirmos a eles para perguntar-lhes em que deve consistir uma reforma política, é bem provável que destaquem a questão do voto facultativo, certamente mais que o voto distrital ou talvez mesmo que a fidelidade partidária (1).
Quando falam em reforma política, os políticos e os cientistas políticos brasileiros seguramente não colocam a obrigatoriedade do voto entre os dois ou três principais itens que a integram. Tendem, isso sim, a compor sua agenda prioritária com questões que pertencem a um registro aparentemente mais elevado, aquele que se refere às instituições e a seu funcionamento. Contudo, não é esse o ponto de vista dos eleitores. Se nos dirigirmos a eles para perguntar-lhes em que deve consistir uma reforma política, é bem provável que destaquem a questão do voto facultativo, certamente mais que o voto distrital ou talvez mesmo que a fidelidade partidária (1).
Nos últimos anos, um descontentamento mais difuso do que bem definido voltou-se contra a obrigatoriedade do voto e, embora poucos partidos tenham tomado posição contra ela, o fato é que muitos indivíduos – e boa parte da imprensa e de seus colunistas – criticam, às vezes com veemência, o caráter legal do "dever cívico". Uma discussão sobe o caráter obrigatório ou facultativo do voto deve assim começar por esse mal-estar, diante de uma imposição que está na Constituição Federal desde 1934 e que fazia parte de um conjunto de medidas – como a instituição da Justiça Eleitoral – que visava a pôr fim à enorme fraude eleitoral que caracterizou e desmoralizou a República Velha.
Antes disso, um esclarecimento: esta questão suscita tantas paixões que é difícil ficar neutro perante ela. Porém, o que tentarei mostrar é que os críticos do voto obrigatório se expressam com tanta indignação que o debate acaba padecendo de uma falta de bons argumentos. Basta ver que, com freqüência, se reclama que "só no Brasil" haveria esta obrigação legal; sabemos, claro, que ela inexiste nos Estados Unidos (país que, aliás, conhece taxas hoje muito altas de abstenção, superiores a metade dos possíveis eleitores), na França, na Grã-Bretanha. Mas países tão distintos entre si como a Austrália, a Costa Rica, a Itália e a Bélgica têm em sua legislação a obrigatoriedade do voto. Todas essas nações, aliás, atestam um longo período de estabilidade em suas instituições democráticas, de pelo menos meio século no caso das três últimas. É sinal da deficiência de nossa discussão que, pelo menos ao que sei, as experiências desses países não sejam comentadas pelos defensores do voto facultativo.
O ponto forte na defesa do voto facultativo não é o rigor conceitual ou teórico de sua argumentação, mas o que chamei de mal-estar: o incômodo que a obrigação representa. Mesmo eu, que sem ser exatamente um defensor do voto legalmente obrigatório tenho criticado a argumentação contrária a ele, senti-me muito incomodado, quando iniciava a redação do presente artigo, ao ser avisado de que deveria entregar o comprovante de voto à seção de pessoal de minha Universidade – o que, por sinal, não tinha sido exigido nos últimos anos. É importante frisar essa sensação, porque é ela um dos pontos que concentram a reclamação contra o voto obrigatório: a percepção de menoridade que ele passa para os cidadãos.
É preciso comprovar, junto ao empregador do setor público, o cumprimento da obrigação legal. Quem não votou na data marcada, por sua vez, precisa ir à Justiça Eleitoral justificar-se ou pagar a multa: nos dois casos, a ida a um cartório, no qual uma vasta documentação é manejada e arquivada, transmite às pessoas presentes uma sensação de futilidade, de gasto inútil de dinheiro público, de controle sobre movimentos e decisões que deveriam ser livres2. É bom lembrar que a imagem pública dos cartórios não é muito positiva entre os brasileiros, e que termos derivados dessa palavra – como cartorial e seus compostos – assumiram nos anos recentes conotação bastante negativa, designando tudo o que é atraso. Assim, embora obviamente os cartórios eleitorais não gerem lucros privados, e o valor da multa seja baixo, o incômodo é grande, e o controle é percebido como algo entre inútil e inaceitável. Inútil, porque os empregados do setor privado não têm a obrigação legal de justificar sua ausência ao voto. Inútil, ainda, porque os que não votaram acabam, muitas vezes, sendo anistiados. Inaceitável, porque a ida ao cartório é vista como a perda completa de um tempo que poderia ser mais bem utilizado em algo útil ou, simplesmente, prazeroso. A dimensão pública, melhor dizendo, cívica passa a ser vista mais como um ônus, uma carga ou encargo, do que como o espaço da verdadeira liberdade, da liberdade coletiva de escolha.
Vale a pena insistir nesse desconforto, porque é ele que gera um descompasso entre a reforma política, tal como é concebida pelos atores e pelos especialistas da política (ou seja, os políticos e os cientistas políticos), e tal como é vista pelos cidadãos em geral. Uma pesquisa que fiz na Internet sobre o voto facultativo (3) expressou três linhas principais de resultados:
1) Manifestação partidária programática em favor dele. Seria o discurso mais bem acabado, mais forte teoricamente. Espantosamente, apenas dois partidos parecem incluí-lo em seus programas. São o Partido Verde e o Partido Federalista, sendo que este último não tem sequer existência legal (4). É possível que outras agremiações também defendam o voto facultativo em seus estatutos, mas o simples fato de que uma pesquisa na rede mundial de computadores não o revele já basta para indicar que não considerem o assunto como muito importante.
Por sua vez, o Partido Verde é uma agremiação com traços específicos. Mais novo que o PT, assumiu, como esse, a imagem de um "partido diferente dos outros", até porque suas reivindicações em vários pontos destoam dos temas usuais da política partidária, a começar pela qualidade da vida. É um partido mais voltado para uma agenda a partir dos cidadãos do que para a preocupação com as instituições. À diferença do PT, porém, os interesses que defende são os que hoje se chamam "difusos", em especial a ecologia. O paradigma dos direitos humanos que o PT defende está naqueles que têm por titular o sujeito coletivo ou social que é uma categoria profissional ou uma classe de trabalhadores; já o modelo dos direitos que o PV quer implementar traz como titular a humanidade inteira ou mesmo, para além da humanidade, a natureza mesma. É, em suma, um partido sui generis. O fato de que ele e um partido inexistente legalmente sejam os únicos a ter, em seus programas, a defesa do voto facultativo mostra assim uma interessante distância entre os políticos e uma posição que cresce na sociedade, mas tendo escassa tradução parlamentar.
2) Discussão do tema no âmbito de alguns partidos. Há várias manifestações de políticos, especialmente do PT, a esse respeito. Alguns, como o ex-deputado do Distrito Federal Geraldo Magela, fazem da abolição do voto obrigatório uma bandeira. Contudo, outros líderes ou pensadores do PT, como a cientista social Maria Victoria Benevides, insistem justamente na manutenção da obrigatoriedade. Não há, pois, consenso ou mesmo decisão sobre o tema, ali mesmo onde ele é mais discutido.
2) Discussão do tema no âmbito de alguns partidos. Há várias manifestações de políticos, especialmente do PT, a esse respeito. Alguns, como o ex-deputado do Distrito Federal Geraldo Magela, fazem da abolição do voto obrigatório uma bandeira. Contudo, outros líderes ou pensadores do PT, como a cientista social Maria Victoria Benevides, insistem justamente na manutenção da obrigatoriedade. Não há, pois, consenso ou mesmo decisão sobre o tema, ali mesmo onde ele é mais discutido.
3) Uma expressão insistente e mesmo indignada de simpatia pelo voto facultativo por parte de eleitores, que mandam cartas a jornais, ou de colunistas, que acreditam captar um difuso sentimento público de repúdio à imposição legal.
Voltaremos, adiante, ao que esse desconforto expressa.
Num plano mais rigoroso do que uma simples sensação de contrariedade, podem-se listar alguns argumentos contra a obrigatoriedade do voto. Como a agenda desta discussão é comandada pelos que contestam o voto obrigatório, é correto dar-lhes, primeiro, a palavra. Principiemos pelos argumentos mais pragmáticos e passemos depois aos mais teóricos.
O argumento pragmático por excelência diz respeito à existência de um forte contingente de eleitores que não teriam consciência política, e por isso mesmo votariam de maneira quase aleatória ou, mesmo, nos "piores" candidatos. Muitos cidadãos brasileiros chegam praticamente à beira da urna sem terem meditado em quem irão votar, sobretudo para os cargos legislativos. (Nos primeiros anos de eleições livres, após a ditadura, a abstenção para esses ofícios era bem maior do que para os executivos; mas a situação mudou um tanto, caindo o número de abstenções, com o uso da urna eletrônica). A proibição legal da boca de urna visou justamente a acabar com esse tipo de voto quase aleatório, mas ele continua existindo. Por isso – entendem os oponentes do voto obrigatório – se dispensarmos os cidadãos pouco motivados para o dever de votar, o resultado será mais representativo dos reais anseios da sociedade. Ou, pelo menos, dos debates políticos. A urna traduzirá melhor a ágora.
Eliminaremos, assim, o voto fortuito. Só manteremos o voto por convicção. Reduziremos o peso da propaganda e o da boca de urna que, apesar de ilegal, ainda se mantém. Para votar, o eleitor precisará sentir-se motivado e, portanto, ele só irá à urna se acreditar que vale a pena. Finalmente, com isso se reduzirá o peso dos currais eleitorais, onde muitos brasileiros ainda votam pressionados pelos poderosos, em especial nos grotões do país.
Esses argumentos têm seu valor, mas se sustentam menos do que parece à primeira vista. Principiando pelo fim, a abolição da obrigação legal de votar é apenas a abolição da obrigação legal de votar. Quer dizer que outras formas de compulsão ou de coerção continuarão em vigor. Nenhum "coronel" usa a lei para forçar os seus dependentes a votar. Quando ele os força, ele o faz, exatamente, contra a lei. A pressão que exerce não acena com a ameaça de multa, mas com riscos de represálias extra-legais. É provável que o fim do voto legalmente obrigatório mantenha como eleitores os que pertencem aos currais do interior, e libere da obrigação os que votam nas cidades maiores. Será, sociologicamente, uma forma de diminuir o peso das aglomerações urbanas (ou de algumas delas) e de manter – isto é, aumentar relativamente – o dos fundos do país. Esse efeito assim será precisamente o oposto do que almejam os defensores do voto facultativo.
Também a propósito do argumento pragmático: é bem diferente o nível de convicção que os eleitores expressam quando votam para o Executivo e para o Legislativo. Eu diria que o sufrágio para presidente, governador e prefeito é um voto mais convicto. Podemos, nós teóricos da política, discordar dos resultados e até considerar que resultem de muita manipulação pela mídia – mas o nível de abstenção espontânea é bem menor para esses cargos do que para os de deputado e vereador. Basta ver, no caso, as pesquisas de opinião pública ao longo de uma campanha eleitoral. Os eleitores se definem pelos candidatos aos cargos executivos antes de escolherem quem vão sufragar para deputado ou vereador. Sua consciência é mais mobilizada pela disputa dos ofícios do poder executivo do que pela concorrência ao legislativo.
Nas primeiras eleições após o fim da ditadura militar, enquanto com freqüência passava dos cinqüenta por cento o número de eleitores que não se manifestavam sobre o Legislativo, o silêncio sobre o Executivo era bem inferior. Os números mudaram com a urna eletrônica, mas não necessariamente as coisas. Muitos, que votam num candidato para o Executivo, ao mesmo tempo escolhem deputados ou vereadores do lado oposto – ou do campo intermediário, "fisiológico", aliados possíveis para qualquer lado.
O voto aleatório para o Legislativo é um problema sério. Certamente tem alguma responsabilidade pelas deficiências em nossas assembléias eleitas. Mas a introdução do voto facultativo não resolve essa questão. Como a eleição é simultânea para o Legislativo e o Executivo na mesma instância de poder (federal, estadual ou municipal), ou o eleitor fica em casa, ou vota para tudo.
Insistindo neste ponto: se tentarmos uma sintonia fina do eleitor, veremos que o verdadeiro desinteresse está mais na escolha dos homens e mulheres que vão votar as leis, do que na de quem vai deter o poder executivo. Isso não só enfraquece o argumento pragmático baseado no desinteresse do eleitor, como exige uma resposta mais afinada. Penso que aqui os problemas são dois, e as soluções, também duas.
O primeiro problema está numa cultura política que privilegia o poder executivo (o poder de mandar, de pagar) em detrimento do legislativo (o poder de fixar normas). Uma frase atribuída a um político mineiro da primeira metade do século 20 definia o poder executivo como o de nomear e demitir, de prender e soltar. Uma longa tradição autoritária, mesmo que bastante contestada e enfraquecida, ainda considera mais importante o poder de lidar com casos do que com normas.
Do executivo, espera-se que, aplicando a lei, passe da norma geral ao caso particular; mas, na prática, isso significa – na frase citada – que ele pratique o mais desbragado casuísmo. Do legislativo, é de se esperar que redija a lei. Mas faz parte de uma sociedade autoritária crer mais na exceção do que na regra, e portanto mais em quem aplica a lei do que nela enquanto norma geral. Aplicar a lei assim acaba significando abrir exceções a ela. Isso, infelizmente, não ocorre somente nas regiões ditas atrasadas do país. Nas próprias instituições universitárias de decisão, tenho notado a dificuldade – que felizmente se vem reduzindo – de discutir e respeitar normas. É forte a nossa tendência a resolver os casos, as singularidades, em vez de trabalhar com o geral, o universal, em suma, com a norma.
Aqui, a solução só pode ser a seguinte. Precisamos desenvolver uma educação política que deixe clara a importância da Lei. E também devemos fortalecer um sistema institucional que salve o poder executivo da imagem de poder dos casuísmos. Examinemos a imagem do poder (subentendido, o executivo) como o de nomear e demitir, de prender e soltar. Hoje, a liberdade de ir e vir depende cada vez mais do Judiciário do que do braço do Executivo que é o delegado. Já o ingresso na função pública ocorre mais e mais por critérios objetivos e impessoais, como o concurso.
Esse duplo processo de "modernização" do espaço institucional esvazia a velha definição do governante como quem contrata e dispensa funcionários, como quem põe e tira da cadeia. Isso é muito positivo, porque aquela definição, embora aparentasse tornar forte o Executivo, na verdade o privava de tudo o que é efetivo poder. Com efeito, o real poder executivo consiste em definir rumos para a sociedade como um todo, utilizando o potencial do Estado, e não em distribuir vantagens pulverizadas. É isso o que o torna público, resgatando-o de sua privatização.
Uma frase usual no passado ("para os amigos tudo, para os inimigos a lei") ilustra esse desprestigio em que se tinha e eventualmente ainda se tem a lei, e mostra como ele se ancorava (ou ainda se ancora) numa privatização do Estado, reduzido a instrumento dos amigos6. Hoje se torna difícil defender esse caminho. Ora, se para termos instituições fortes precisamos afastá-las do varejo e situá-las na definição de políticas mais amplas, isso implica, no tocante ao eleitorado, deixar claro que a troca de favores por votos é péssimo negócio. Um Estado de instituições eficazes assim se associa a uma idéia do sufrágio livre e responsável. É preciso emancipar o voto da crença no casuísmo, na vantagem pessoal. E isso depende, repito, de uma educação política, que passa tanto pelas escolas quanto pela mídia eletrônica.
O segundo problema está na propaganda eleitoral. Dado o número de candidatos, ela se concentra mais nos cargos executivos do que nos legislativos. É um absurdo ver, na televisão ou no rádio, a fila de postulantes ao papel de legislador, cada um recitando seu nome e, eventualmente, uma frase – inteligente ou imbecil, infelizmente pouco importa. Não dá para formar a convicção com base nessa propaganda. Como modificá-la? Aqui é mais difícil sugerir uma resposta. É possível que a melhor solução para essa questão esteja no voto distrital, no qual o eleitor tem diante de si um número manejável de candidatos, mas esse também tem seus problemas, que não cabe discutir aqui7. O fato é que a propaganda eleitoral é muito deficiente, na formação de idéias e de ideais entre os cidadãos.
Mas pelo menos uma sugestão cabe, quanto à mídia eleitoral. Os debates são mais ricos do que os monólogos. Estes últimos tendem ao formato do vídeo-clipe, que está longe de ajudar na reflexão. Talvez se possa condicionar o direito de usar o horário eleitoral dito gratuito8 à efetiva participação em debates abertos, com outros candidatos e talvez com jornalistas. Quer dizer, o problema do horário eleitoral não é só que ele não dê lugar para os candidatos ao legislativo se expressarem. É que, mesmo para o executivo, se discute pouco a idéia e se valoriza demais a imagem.
Há mais um ponto, se discutirmos o voto obrigatório do ponto de vista pragmático, isto é, de seus efeitos práticos. Devemos abordar um ponto que é ainda mais importante por quase nunca ser mencionado entre nós. Nos Estados Unidos, onde o voto é facultativo, não só a abstenção nas eleições tem sido bastante grande, como ela tende a se perpetuar nos mesmos grupos sociais e étnicos – basicamente, os dos discriminados socialmente, em especial os negros. Ora, segundo a discussão política que atualmente chega à própria mídia, esse fenômeno estaria agravando a desigualdade, na medida em que (1) os negros votam menos que os brancos, portanto (2) os eleitos procuram atender mais os interesses de seus reais eleitores do que os dos não-votantes, de modo que (3) a exclusão social dos negros aumenta e, com isso, (4) mantém-se ou se acentua a abstenção eleitoral dos negros. Temos assim um círculo vicioso da exclusão, piorada pelo caráter facultativo do voto.
Na verdade, o que esse fenômeno mostra é que o voto facultativo não é apenas uma questão de foro íntimo ou de direito privado, mas algo que tem seu papel (perverso) no organizar a vida social. E note-se que me refiro a um debate norte-americano que não é mais só dos especialistas mas entra na mídia, pelo menos a de melhor qualidade, a dos quality papers que são os principais jornais da Costa Leste: ou seja, a opinião pública mais bem informada e formada começa a discutir o voto facultativo de uma maneira diferente da costumeira em nosso país.
No Brasil, com efeito, o que predomina é a discussão do voto obrigatório ou facultativo à luz dos direitos individuais. O que se argumenta é que o cidadão se vê infantilizado por um dever de votar e, sendo ele maior, racional, capaz de tomar suas decisões, não há por que obrigá-lo a exercer o papel de eleitor. O argumento poderia até ser bom, mas falta-lhe algo crucial: ele considera apenas o cidadão enquanto indivíduo, enquanto pessoa abstraída de seus condicionantes sociais. Ora, o que a experiência dos Estados Unidos aponta é que a abstenção se cristaliza em certas camadas sociais. Ela é maior entre os negros do que entre os brancos. Um mapa sociológico assim demonstra que não são indivíduos que decidem – no uso de sua liberdade pessoal – não votar, mas sim que são grupos sociais que, por fatores historicamente explicáveis, se marginalizam em face da dimensão política da sociedade.
Esse aspecto do problema o faz mudar totalmente de figura. Uma coisa é lidar com indivíduos, sujeitos de direitos individuais. Outra coisa é trabalhar com grupos. A idéia de que o indivíduo decida em plena ou pelo menos razoável liberdade mostra-se extremamente tentadora para a filosofia política e, por que não, para a ciência política. Mas o que estamos vendo é que esse é um ideal, mais que uma realidade. É um sonho, mais que uma descrição. É um projeto, e não um dado. Concordo que nos esforcemos para produzir esse fim, essa meta – mas não podemos tomá-lo como ponto de partida. Não podemos acreditar que o indivíduo "é livre" e por isso escolhe em abstrata liberdade se vota ou não; é preciso que ele se torne livre, e para tanto o pré-requisito é combater a exclusão social.
Finalmente, esta nota impõe certas obrigações a um partido de esquerda como o PT. Uma das principais características da esquerda é levar em conta os grupos sociais e não apenas o indivíduo, e isso porque o privilégio conceitual dado a esse último constitui peça fundamental da ideologia de dominação da classe burguesa, dificultando tanto a compreensão quanto a superação da desigualdade e da injustiça social. Ora, por isso mesmo seria estranho o PT não se perguntar sobre os efeitos do voto facultativo sobre a desigualdade social. É de se esperar que, quando o Brasil resolver a questão da injustiça de classes, a escolha entre votar e não votar se torne assunto de foro íntimo. Mas mesmo num país mais rico e com menos miseráveis, como os Estados Unidos, não é esse o caso.
Vamos ao argumento teórico em favor do voto facultativo. Falei, antes, na sensação de que o voto obrigatório constituiria uma tutela incômoda sobre os cidadãos; tentemos agora teorizar essa sensação, esse mal–estar. O resumo do argumento seria o seguinte: se votar é um direito, uma liberdade, como poderá constituir um dever, uma obrigação? Melhor ainda: se o momento mais alto de nossa liberdade, numa democracia, consiste no voto, então por que serei forçado a votar, por que não poderia eu, simplesmente, escolher não escolher, decidir não participar do processo eleitoral?
O argumento seduz, mas não é tão bom quanto aparenta. Há nele pelo menos um erro. Nem toda liberdade inclui uma liberdade de não fazer nada. Algumas, sim. Se tenho liberdade para dirigir carros, ou para comprar mercadorias, ou para fazer um curso, sou também livre para não guiar, não adquirir, não estudar. Mas, nesse caso, trata-se de liberdades de direito privado. Referem-se a assuntos apenas meus, que não dizem respeito a outras pessoas. Liberdades públicas são diferentes. E os antigos romanos já o sabiam, quando faziam o direito e o dever coincidirem no caso da cidadania. Ser cives romanus, cidadão romano, não envolvia apenas direitos: acarretava obrigações. E não era possível deslindar umas de outras.
Mesmo uma liberdade que à primeira vista pertence ao campo privado pode mudar de significação se a pensarmos em termos públicos. Voltemos ao direito de estudar, que expus no parágrafo anterior como questão privada. Ora, desde o final do século 19 entendemos que um certo volume de conhecimentos adquiridos na escola é um cabedal mínimo para a cidadania. No começo era só ler e escrever, hoje é muito mais do que isso. Por isso, não é legítimo o pai privar seu filho desse mínimo de saberes. Ou seja, a escolha de estudar (ou não) sai do foro íntimo e passa a relacionar-se com a construção de um espaço comum dos seres humanos. Quem não detém um estoque mínimo de conhecimentos, quem não constituiu uma formação educacional mínima fica tão desamparado – ou tão perigoso – socialmente que a educação do próprio indivíduo se torna questão pública, política, social, não mais apenas pessoal.
Tomemos outro exemplo. A Inglaterra construiu a democracia mediante um lento processo, que começa no século 13. Os homens livres e proprietários – a classe média possível numa sociedade rural – votam desde então em deputados para o Parlamento, mas ao mesmo tempo participam, em suas aldeias ou cidades, de júris, que são os órgãos que decidem em matéria judicial. Enquanto no continente europeu a justiça é distribuída por magistrados que pertencem à nobreza, e vem de cima para baixo, na Inglaterra são os mais organizados dentre os homens comuns, dentre os plebeus, que resolvem boa parte das pendências que vão a juízo. Com isso, embora a Inglaterra seja então um país pobre e atrasado, se comparado com o continente, um jurista do porte de Fortescue dirá, na década de 1470, que é exatamente por essa participação na coisa pública que os camponeses de seu país se vestem e se alimentam melhor que os da França. Os franceses comem cascas de árvore, os ingleses, carne. E Fortescue se entusiasma com a cerveja: aqui, diz ele, só se bebe água por dieta ou promessa...
Ora, tudo isso forma um conjunto indissociável. Os direitos de que os ingleses desfrutam não podem ser distinguidos dos deveres que eles cumprem. O ônus de servir no júri está ligado a esse poder que os plebeus têm, nessa época, quase que só nesse país. Ou lembremos a guerra dos Cem Anos. Froissart, cronista do lado francês, fica chocado. Numa batalha famosa, a fina flor da cavalaria francesa é dizimada por flechas expedidas pelos arqueiros ingleses – ou galeses – a centenas de metros de distância, de modo que, suprema humilhação, os nobres que morrem nem sequer podem ver quem os mata. E esses arqueiros vitoriosos, essa plebe que massacra a aristocracia mais orgulhosa da Europa, chamam-se yeomen, o mesmo nome que é dado nessa época aos pequenos proprietários que servem no júri e elegem deputados à Câmara dos Comuns. Jamais os pequenos proprietários teriam conseguido o peso que foi seu na política inglesa – bem superior ao que tinham os camponeses da França – se não cumprissem esse papel na sociedade.
Ou recuemos mais ainda, aos gregos e romanos da Antiguidade. Eles, quando falavam da sociedade, usavam com freqüência o termo nau do Estado. Mas – observa o historiador Paul Veyne – nesse navio havia pilotos, havia tripulantes, não havia passageiros. Ninguém se desincumbia das obrigações políticas, na Grécia democrática ou na Roma republicana, apenas comprando a sua passagem (diríamos hoje: apenas pagando seus impostos). Era preciso, além disso, trabalhar pessoalmente pela coisa pública. Não se terceirizava a cidadania.
Muitos, a maioria certamente dos que se expressam pela mídia, entendem que a liberdade do ser humano requer que o voto não seja obrigatório. O então deputado José Serra, do PSDB, por exemplo, em fins de 1993 tomava a defesa da liberdade contra a obrigatoriedade do voto. Lembrando a participação política num partido, a participação social num sindicato ou a religiosa num culto, ele mostrava que todas essas formas de vida social ativa constituem direitos, não obrigações10. O dever cívico teria uma certa memória ditatorial e se quiséssemos, se quisermos, liberdade para valer, precisaríamos apostar plenamente na liberdade, inclusive a de não querer participar da política.
Já criticamos esse argumento, por confundir um direito público e um privado. Mesmo a presença num partido pode ser entendida como questão privada; mas o papel que se cumpre na construção da res publica, da casa comum dos homens, não. Um direito pode estar associado a um dever. À primeira vista, é verdade que soa absurdo obrigar alguém a votar, isto é, forçar uma pessoa a ser livre. Mas perguntemos pelo contrário: a liberdade inclui o direito de escolher não ser livre? Pode parecer que sim. Porém, se considerarmos a liberdade e a democracia como valores fundamentais, algumas conseqüências se seguem. A primeira é que liberdade e democracia não são apenas meios ou instrumentos, mas também fins. A segunda é que, por isso mesmo, não podemos renunciar a elas. Se eu puder abrir mão da liberdade, ou se a maioria do povo puder votar o fim da democracia, será porque elas são de pequeno valor. Mas, se forem decisivas no perfil da sociedade que queremos, não poderemos desistir delas. É neste sentido que o voto, na democracia, não é somente um direito, porém igualmente uma obrigação. (Uma obrigação ética. Se além disso é ou não uma obrigação legal, isso é outra coisa. Mas, como aqui a discussão é teórica, filosófica, o que era preciso demonstrar era que um direito pode ser também um dever).
Voltaremos, adiante, ao que esse desconforto expressa.
Num plano mais rigoroso do que uma simples sensação de contrariedade, podem-se listar alguns argumentos contra a obrigatoriedade do voto. Como a agenda desta discussão é comandada pelos que contestam o voto obrigatório, é correto dar-lhes, primeiro, a palavra. Principiemos pelos argumentos mais pragmáticos e passemos depois aos mais teóricos.
O argumento pragmático por excelência diz respeito à existência de um forte contingente de eleitores que não teriam consciência política, e por isso mesmo votariam de maneira quase aleatória ou, mesmo, nos "piores" candidatos. Muitos cidadãos brasileiros chegam praticamente à beira da urna sem terem meditado em quem irão votar, sobretudo para os cargos legislativos. (Nos primeiros anos de eleições livres, após a ditadura, a abstenção para esses ofícios era bem maior do que para os executivos; mas a situação mudou um tanto, caindo o número de abstenções, com o uso da urna eletrônica). A proibição legal da boca de urna visou justamente a acabar com esse tipo de voto quase aleatório, mas ele continua existindo. Por isso – entendem os oponentes do voto obrigatório – se dispensarmos os cidadãos pouco motivados para o dever de votar, o resultado será mais representativo dos reais anseios da sociedade. Ou, pelo menos, dos debates políticos. A urna traduzirá melhor a ágora.
Eliminaremos, assim, o voto fortuito. Só manteremos o voto por convicção. Reduziremos o peso da propaganda e o da boca de urna que, apesar de ilegal, ainda se mantém. Para votar, o eleitor precisará sentir-se motivado e, portanto, ele só irá à urna se acreditar que vale a pena. Finalmente, com isso se reduzirá o peso dos currais eleitorais, onde muitos brasileiros ainda votam pressionados pelos poderosos, em especial nos grotões do país.
Esses argumentos têm seu valor, mas se sustentam menos do que parece à primeira vista. Principiando pelo fim, a abolição da obrigação legal de votar é apenas a abolição da obrigação legal de votar. Quer dizer que outras formas de compulsão ou de coerção continuarão em vigor. Nenhum "coronel" usa a lei para forçar os seus dependentes a votar. Quando ele os força, ele o faz, exatamente, contra a lei. A pressão que exerce não acena com a ameaça de multa, mas com riscos de represálias extra-legais. É provável que o fim do voto legalmente obrigatório mantenha como eleitores os que pertencem aos currais do interior, e libere da obrigação os que votam nas cidades maiores. Será, sociologicamente, uma forma de diminuir o peso das aglomerações urbanas (ou de algumas delas) e de manter – isto é, aumentar relativamente – o dos fundos do país. Esse efeito assim será precisamente o oposto do que almejam os defensores do voto facultativo.
Também a propósito do argumento pragmático: é bem diferente o nível de convicção que os eleitores expressam quando votam para o Executivo e para o Legislativo. Eu diria que o sufrágio para presidente, governador e prefeito é um voto mais convicto. Podemos, nós teóricos da política, discordar dos resultados e até considerar que resultem de muita manipulação pela mídia – mas o nível de abstenção espontânea é bem menor para esses cargos do que para os de deputado e vereador. Basta ver, no caso, as pesquisas de opinião pública ao longo de uma campanha eleitoral. Os eleitores se definem pelos candidatos aos cargos executivos antes de escolherem quem vão sufragar para deputado ou vereador. Sua consciência é mais mobilizada pela disputa dos ofícios do poder executivo do que pela concorrência ao legislativo.
Nas primeiras eleições após o fim da ditadura militar, enquanto com freqüência passava dos cinqüenta por cento o número de eleitores que não se manifestavam sobre o Legislativo, o silêncio sobre o Executivo era bem inferior. Os números mudaram com a urna eletrônica, mas não necessariamente as coisas. Muitos, que votam num candidato para o Executivo, ao mesmo tempo escolhem deputados ou vereadores do lado oposto – ou do campo intermediário, "fisiológico", aliados possíveis para qualquer lado.
O voto aleatório para o Legislativo é um problema sério. Certamente tem alguma responsabilidade pelas deficiências em nossas assembléias eleitas. Mas a introdução do voto facultativo não resolve essa questão. Como a eleição é simultânea para o Legislativo e o Executivo na mesma instância de poder (federal, estadual ou municipal), ou o eleitor fica em casa, ou vota para tudo.
Insistindo neste ponto: se tentarmos uma sintonia fina do eleitor, veremos que o verdadeiro desinteresse está mais na escolha dos homens e mulheres que vão votar as leis, do que na de quem vai deter o poder executivo. Isso não só enfraquece o argumento pragmático baseado no desinteresse do eleitor, como exige uma resposta mais afinada. Penso que aqui os problemas são dois, e as soluções, também duas.
O primeiro problema está numa cultura política que privilegia o poder executivo (o poder de mandar, de pagar) em detrimento do legislativo (o poder de fixar normas). Uma frase atribuída a um político mineiro da primeira metade do século 20 definia o poder executivo como o de nomear e demitir, de prender e soltar. Uma longa tradição autoritária, mesmo que bastante contestada e enfraquecida, ainda considera mais importante o poder de lidar com casos do que com normas.
Do executivo, espera-se que, aplicando a lei, passe da norma geral ao caso particular; mas, na prática, isso significa – na frase citada – que ele pratique o mais desbragado casuísmo. Do legislativo, é de se esperar que redija a lei. Mas faz parte de uma sociedade autoritária crer mais na exceção do que na regra, e portanto mais em quem aplica a lei do que nela enquanto norma geral. Aplicar a lei assim acaba significando abrir exceções a ela. Isso, infelizmente, não ocorre somente nas regiões ditas atrasadas do país. Nas próprias instituições universitárias de decisão, tenho notado a dificuldade – que felizmente se vem reduzindo – de discutir e respeitar normas. É forte a nossa tendência a resolver os casos, as singularidades, em vez de trabalhar com o geral, o universal, em suma, com a norma.
Aqui, a solução só pode ser a seguinte. Precisamos desenvolver uma educação política que deixe clara a importância da Lei. E também devemos fortalecer um sistema institucional que salve o poder executivo da imagem de poder dos casuísmos. Examinemos a imagem do poder (subentendido, o executivo) como o de nomear e demitir, de prender e soltar. Hoje, a liberdade de ir e vir depende cada vez mais do Judiciário do que do braço do Executivo que é o delegado. Já o ingresso na função pública ocorre mais e mais por critérios objetivos e impessoais, como o concurso.
Esse duplo processo de "modernização" do espaço institucional esvazia a velha definição do governante como quem contrata e dispensa funcionários, como quem põe e tira da cadeia. Isso é muito positivo, porque aquela definição, embora aparentasse tornar forte o Executivo, na verdade o privava de tudo o que é efetivo poder. Com efeito, o real poder executivo consiste em definir rumos para a sociedade como um todo, utilizando o potencial do Estado, e não em distribuir vantagens pulverizadas. É isso o que o torna público, resgatando-o de sua privatização.
Uma frase usual no passado ("para os amigos tudo, para os inimigos a lei") ilustra esse desprestigio em que se tinha e eventualmente ainda se tem a lei, e mostra como ele se ancorava (ou ainda se ancora) numa privatização do Estado, reduzido a instrumento dos amigos6. Hoje se torna difícil defender esse caminho. Ora, se para termos instituições fortes precisamos afastá-las do varejo e situá-las na definição de políticas mais amplas, isso implica, no tocante ao eleitorado, deixar claro que a troca de favores por votos é péssimo negócio. Um Estado de instituições eficazes assim se associa a uma idéia do sufrágio livre e responsável. É preciso emancipar o voto da crença no casuísmo, na vantagem pessoal. E isso depende, repito, de uma educação política, que passa tanto pelas escolas quanto pela mídia eletrônica.
O segundo problema está na propaganda eleitoral. Dado o número de candidatos, ela se concentra mais nos cargos executivos do que nos legislativos. É um absurdo ver, na televisão ou no rádio, a fila de postulantes ao papel de legislador, cada um recitando seu nome e, eventualmente, uma frase – inteligente ou imbecil, infelizmente pouco importa. Não dá para formar a convicção com base nessa propaganda. Como modificá-la? Aqui é mais difícil sugerir uma resposta. É possível que a melhor solução para essa questão esteja no voto distrital, no qual o eleitor tem diante de si um número manejável de candidatos, mas esse também tem seus problemas, que não cabe discutir aqui7. O fato é que a propaganda eleitoral é muito deficiente, na formação de idéias e de ideais entre os cidadãos.
Mas pelo menos uma sugestão cabe, quanto à mídia eleitoral. Os debates são mais ricos do que os monólogos. Estes últimos tendem ao formato do vídeo-clipe, que está longe de ajudar na reflexão. Talvez se possa condicionar o direito de usar o horário eleitoral dito gratuito8 à efetiva participação em debates abertos, com outros candidatos e talvez com jornalistas. Quer dizer, o problema do horário eleitoral não é só que ele não dê lugar para os candidatos ao legislativo se expressarem. É que, mesmo para o executivo, se discute pouco a idéia e se valoriza demais a imagem.
Há mais um ponto, se discutirmos o voto obrigatório do ponto de vista pragmático, isto é, de seus efeitos práticos. Devemos abordar um ponto que é ainda mais importante por quase nunca ser mencionado entre nós. Nos Estados Unidos, onde o voto é facultativo, não só a abstenção nas eleições tem sido bastante grande, como ela tende a se perpetuar nos mesmos grupos sociais e étnicos – basicamente, os dos discriminados socialmente, em especial os negros. Ora, segundo a discussão política que atualmente chega à própria mídia, esse fenômeno estaria agravando a desigualdade, na medida em que (1) os negros votam menos que os brancos, portanto (2) os eleitos procuram atender mais os interesses de seus reais eleitores do que os dos não-votantes, de modo que (3) a exclusão social dos negros aumenta e, com isso, (4) mantém-se ou se acentua a abstenção eleitoral dos negros. Temos assim um círculo vicioso da exclusão, piorada pelo caráter facultativo do voto.
Na verdade, o que esse fenômeno mostra é que o voto facultativo não é apenas uma questão de foro íntimo ou de direito privado, mas algo que tem seu papel (perverso) no organizar a vida social. E note-se que me refiro a um debate norte-americano que não é mais só dos especialistas mas entra na mídia, pelo menos a de melhor qualidade, a dos quality papers que são os principais jornais da Costa Leste: ou seja, a opinião pública mais bem informada e formada começa a discutir o voto facultativo de uma maneira diferente da costumeira em nosso país.
No Brasil, com efeito, o que predomina é a discussão do voto obrigatório ou facultativo à luz dos direitos individuais. O que se argumenta é que o cidadão se vê infantilizado por um dever de votar e, sendo ele maior, racional, capaz de tomar suas decisões, não há por que obrigá-lo a exercer o papel de eleitor. O argumento poderia até ser bom, mas falta-lhe algo crucial: ele considera apenas o cidadão enquanto indivíduo, enquanto pessoa abstraída de seus condicionantes sociais. Ora, o que a experiência dos Estados Unidos aponta é que a abstenção se cristaliza em certas camadas sociais. Ela é maior entre os negros do que entre os brancos. Um mapa sociológico assim demonstra que não são indivíduos que decidem – no uso de sua liberdade pessoal – não votar, mas sim que são grupos sociais que, por fatores historicamente explicáveis, se marginalizam em face da dimensão política da sociedade.
Esse aspecto do problema o faz mudar totalmente de figura. Uma coisa é lidar com indivíduos, sujeitos de direitos individuais. Outra coisa é trabalhar com grupos. A idéia de que o indivíduo decida em plena ou pelo menos razoável liberdade mostra-se extremamente tentadora para a filosofia política e, por que não, para a ciência política. Mas o que estamos vendo é que esse é um ideal, mais que uma realidade. É um sonho, mais que uma descrição. É um projeto, e não um dado. Concordo que nos esforcemos para produzir esse fim, essa meta – mas não podemos tomá-lo como ponto de partida. Não podemos acreditar que o indivíduo "é livre" e por isso escolhe em abstrata liberdade se vota ou não; é preciso que ele se torne livre, e para tanto o pré-requisito é combater a exclusão social.
Finalmente, esta nota impõe certas obrigações a um partido de esquerda como o PT. Uma das principais características da esquerda é levar em conta os grupos sociais e não apenas o indivíduo, e isso porque o privilégio conceitual dado a esse último constitui peça fundamental da ideologia de dominação da classe burguesa, dificultando tanto a compreensão quanto a superação da desigualdade e da injustiça social. Ora, por isso mesmo seria estranho o PT não se perguntar sobre os efeitos do voto facultativo sobre a desigualdade social. É de se esperar que, quando o Brasil resolver a questão da injustiça de classes, a escolha entre votar e não votar se torne assunto de foro íntimo. Mas mesmo num país mais rico e com menos miseráveis, como os Estados Unidos, não é esse o caso.
Vamos ao argumento teórico em favor do voto facultativo. Falei, antes, na sensação de que o voto obrigatório constituiria uma tutela incômoda sobre os cidadãos; tentemos agora teorizar essa sensação, esse mal–estar. O resumo do argumento seria o seguinte: se votar é um direito, uma liberdade, como poderá constituir um dever, uma obrigação? Melhor ainda: se o momento mais alto de nossa liberdade, numa democracia, consiste no voto, então por que serei forçado a votar, por que não poderia eu, simplesmente, escolher não escolher, decidir não participar do processo eleitoral?
O argumento seduz, mas não é tão bom quanto aparenta. Há nele pelo menos um erro. Nem toda liberdade inclui uma liberdade de não fazer nada. Algumas, sim. Se tenho liberdade para dirigir carros, ou para comprar mercadorias, ou para fazer um curso, sou também livre para não guiar, não adquirir, não estudar. Mas, nesse caso, trata-se de liberdades de direito privado. Referem-se a assuntos apenas meus, que não dizem respeito a outras pessoas. Liberdades públicas são diferentes. E os antigos romanos já o sabiam, quando faziam o direito e o dever coincidirem no caso da cidadania. Ser cives romanus, cidadão romano, não envolvia apenas direitos: acarretava obrigações. E não era possível deslindar umas de outras.
Mesmo uma liberdade que à primeira vista pertence ao campo privado pode mudar de significação se a pensarmos em termos públicos. Voltemos ao direito de estudar, que expus no parágrafo anterior como questão privada. Ora, desde o final do século 19 entendemos que um certo volume de conhecimentos adquiridos na escola é um cabedal mínimo para a cidadania. No começo era só ler e escrever, hoje é muito mais do que isso. Por isso, não é legítimo o pai privar seu filho desse mínimo de saberes. Ou seja, a escolha de estudar (ou não) sai do foro íntimo e passa a relacionar-se com a construção de um espaço comum dos seres humanos. Quem não detém um estoque mínimo de conhecimentos, quem não constituiu uma formação educacional mínima fica tão desamparado – ou tão perigoso – socialmente que a educação do próprio indivíduo se torna questão pública, política, social, não mais apenas pessoal.
Tomemos outro exemplo. A Inglaterra construiu a democracia mediante um lento processo, que começa no século 13. Os homens livres e proprietários – a classe média possível numa sociedade rural – votam desde então em deputados para o Parlamento, mas ao mesmo tempo participam, em suas aldeias ou cidades, de júris, que são os órgãos que decidem em matéria judicial. Enquanto no continente europeu a justiça é distribuída por magistrados que pertencem à nobreza, e vem de cima para baixo, na Inglaterra são os mais organizados dentre os homens comuns, dentre os plebeus, que resolvem boa parte das pendências que vão a juízo. Com isso, embora a Inglaterra seja então um país pobre e atrasado, se comparado com o continente, um jurista do porte de Fortescue dirá, na década de 1470, que é exatamente por essa participação na coisa pública que os camponeses de seu país se vestem e se alimentam melhor que os da França. Os franceses comem cascas de árvore, os ingleses, carne. E Fortescue se entusiasma com a cerveja: aqui, diz ele, só se bebe água por dieta ou promessa...
Ora, tudo isso forma um conjunto indissociável. Os direitos de que os ingleses desfrutam não podem ser distinguidos dos deveres que eles cumprem. O ônus de servir no júri está ligado a esse poder que os plebeus têm, nessa época, quase que só nesse país. Ou lembremos a guerra dos Cem Anos. Froissart, cronista do lado francês, fica chocado. Numa batalha famosa, a fina flor da cavalaria francesa é dizimada por flechas expedidas pelos arqueiros ingleses – ou galeses – a centenas de metros de distância, de modo que, suprema humilhação, os nobres que morrem nem sequer podem ver quem os mata. E esses arqueiros vitoriosos, essa plebe que massacra a aristocracia mais orgulhosa da Europa, chamam-se yeomen, o mesmo nome que é dado nessa época aos pequenos proprietários que servem no júri e elegem deputados à Câmara dos Comuns. Jamais os pequenos proprietários teriam conseguido o peso que foi seu na política inglesa – bem superior ao que tinham os camponeses da França – se não cumprissem esse papel na sociedade.
Ou recuemos mais ainda, aos gregos e romanos da Antiguidade. Eles, quando falavam da sociedade, usavam com freqüência o termo nau do Estado. Mas – observa o historiador Paul Veyne – nesse navio havia pilotos, havia tripulantes, não havia passageiros. Ninguém se desincumbia das obrigações políticas, na Grécia democrática ou na Roma republicana, apenas comprando a sua passagem (diríamos hoje: apenas pagando seus impostos). Era preciso, além disso, trabalhar pessoalmente pela coisa pública. Não se terceirizava a cidadania.
Muitos, a maioria certamente dos que se expressam pela mídia, entendem que a liberdade do ser humano requer que o voto não seja obrigatório. O então deputado José Serra, do PSDB, por exemplo, em fins de 1993 tomava a defesa da liberdade contra a obrigatoriedade do voto. Lembrando a participação política num partido, a participação social num sindicato ou a religiosa num culto, ele mostrava que todas essas formas de vida social ativa constituem direitos, não obrigações10. O dever cívico teria uma certa memória ditatorial e se quiséssemos, se quisermos, liberdade para valer, precisaríamos apostar plenamente na liberdade, inclusive a de não querer participar da política.
Já criticamos esse argumento, por confundir um direito público e um privado. Mesmo a presença num partido pode ser entendida como questão privada; mas o papel que se cumpre na construção da res publica, da casa comum dos homens, não. Um direito pode estar associado a um dever. À primeira vista, é verdade que soa absurdo obrigar alguém a votar, isto é, forçar uma pessoa a ser livre. Mas perguntemos pelo contrário: a liberdade inclui o direito de escolher não ser livre? Pode parecer que sim. Porém, se considerarmos a liberdade e a democracia como valores fundamentais, algumas conseqüências se seguem. A primeira é que liberdade e democracia não são apenas meios ou instrumentos, mas também fins. A segunda é que, por isso mesmo, não podemos renunciar a elas. Se eu puder abrir mão da liberdade, ou se a maioria do povo puder votar o fim da democracia, será porque elas são de pequeno valor. Mas, se forem decisivas no perfil da sociedade que queremos, não poderemos desistir delas. É neste sentido que o voto, na democracia, não é somente um direito, porém igualmente uma obrigação. (Uma obrigação ética. Se além disso é ou não uma obrigação legal, isso é outra coisa. Mas, como aqui a discussão é teórica, filosófica, o que era preciso demonstrar era que um direito pode ser também um dever).
Voltemos aos efeitos pragmáticos da supressão do voto obrigatório.
Pode-se esperar um resultado prático, inegavelmente positivo, do voto facultativo: os partidos deixariam de disputar uma reserva de mercado, um terreno cativo, que é o dos sufrágios obrigatórios, e precisariam lutar mais para conseguir a votação. Hoje eles apenas precisam convencer o eleitor a dar-lhe um voto, que esse terá de emitir de qualquer forma; com o voto facultativo, o partido precisará persuadir, antes de mais nada, o próprio eleitor a ir votar. Considero esse um argumento de peso. Uma comparação o ilustrará. Imaginemos que tenho um cupom que só posso gastar em determinado produto, digamos, cinema. Como serve somente para isso, acabarei por ver algum filme ou dá-lo a alguém, mesmo que não goste de cinema ou dos filmes em exibição. Mas, se eu for livre para mais usos, tendo por exemplo dinheiro em mãos, os cineastas precisarão dar o melhor de si para conseguir seu público.
Em outras palavras, o voto facultativo obrigaria os partidos a mudar de atitude. Em vez de disputarem um butim, um quantum que só pode ser usado por políticos, eles precisarão trabalhar duro para constituir o próprio espaço da política. Tendo de convencer os eleitores a votar, deverão explicar-lhes de que modo o voto concorre para melhorar suas vidas. Uma parte, pelo menos, de sua campanha será gasta em mostrar que o sistema eleitoral serve para alguma coisa. Isso é muito importante, porque comprometerá os partidos com o cerne do processo democrático, em vez de deixá-los apenas como seus beneficiários. Digamos: hoje é apenas a Justiça Eleitoral que enfatiza a importância das eleições, em sua propaganda institucional. Por sua própria natureza de magistratura, obrigada a ser neutra e imparcial, a Justiça se limita à forma das eleições, sem abordar o seu conteúdo. Daí que a propaganda em prol do ato mesmo de votar seja vaga e ineficaz, resumindo-se em dois pontos: primeiro, informações técnicas; segundo, proclamações genéricas e pouco convincentes (o voto é a base da democracia). Até porque, tendo a Justiça o poder de punir quem não vote, ela não precisa conquistar a boa vontade dos eleitores recalcitrantes. Por isso, não precisa dizer para que o voto serve. Mas, se os próprios partidos precisarem incentivar os cidadãos a se fazerem eleitores, eles precisarão aprofundar-se no trabalho de persuasão. E esse não se limitará mais a generalidades sobre o voto e a democracia, mas deverá ir mais longe. Um partido de esquerda assim dirá que, ao longo dos tempos, o voto foi uma das principais armas pelas quais os mais pobres melhoraram sua condição social, elegendo parlamentares e governantes que defendam os seus direitos. Já um partido liberal, ou de direita não autoritária, poderá afirmar que pelo voto se limita o poder do governo e se protege a liberdade privada ou de empreender. Argumentos deste tipo a Justiça Eleitoral jamais poderia expor, mas as agremiações em disputa podem utilizar. O voto ficará assim mais associado a um projeto de emancipação, seja esta no sentido de melhorar as condições de vida da sociedade, como preferirá a esquerda, seja na acepção de assegurar a liberdade de escolha dos indivíduos, como provavelmente dirá uma direita não autoritária.
Até o presente momento, expus argumentos de um lado e de outro, a tal ponto que o leitor estará em dúvida, entre outras coisas, sobre minha opinião pessoal. Mas o propósito deste artigo não é defender a posição A ou B, e sim tentar que o debate melhore de nível. Infelizmente, é tal a hegemonia na mídia dos defensores do voto facultativo que a obrigatoriedade acaba passando como uma relíquia do passado, um sinal de nossa obsolescência política – e isso é péssimo, porque rebaixa a qualidade da discussão. O que assim procuramos foi uma espécie de luta de boxe na qual apostaríamos ora num lutador, ora no outro, a fim de melhorar a qualidade da disputa. Ganhe qualquer um deles, nós assim ganhamos como público. Fazendo um mau trocadilho, como a questão aqui é pública, vale a pena essa aposta nos dois lados. Mas isso não nos impede de encaminhar algumas conclusões.
A primeira é que nada do exposto é simples. Retomemos uma observação básica: a intenção de votar é diferente para o Executivo e o Legislativo. O mesmo eleitor que se anima por um candidato à presidência, ao governo do Estado ou à prefeitura pode se manifestar bem pouco interessado nos que disputam o Parlamento correspondente. Ora, a discussão entre voto facultativo e obrigatório não comporta uma solução intermediária, em que fosse imperativo votar no Executivo e dispensável sufragar nomes para o Legislativo. Daí que o problema possa, deva ser deslocado: é fundamental fazer que haja mais e melhores informações sobre os candidatos às casas de leis. O desinteresse por esse poder – o mais democrático dos três poderes clássicos – subsiste, em larga medida, devido à desinformação a respeito do que fazem os homens e mulheres que o compõem. Sugerimos, acima, que o horário eleitoral pago pelo Estado seja reservado aos candidatos que participem de debates. Não é difícil definir essa obrigação em lei, bem como determinar um certo número de critérios para que o debate seja honesto. Outras soluções dependem, porém, do modelo de voto que se adote. Uma eleição proporcional torna mais problemático o debate entre os candidatos a deputado federal e estadual, porque são inúmeros. Uma eleição distrital facilita esse confronto entre rivais diretos. Na vereança, é pouco provável que se pense em distritalização. Na disputa do Senado, os candidatos são poucos e já há debates.
Agora, isso posto, a tendência provável em nossa sociedade é que se tenda a acabar com a obrigatoriedade do voto. Pode demorar, ou não, mas vivemos em nossos dias uma tendência histórica que favorece o indivíduo ou a pessoa, contra as regulamentações tradicionais. A tutela sobre as liberdades parece cada vez menos justificável. Embora os argumentos contra o voto obrigatório sejam às vezes bem fracos teoricamente, expressam uma espécie de espírito de nossa época. O que acaba triunfando na história não é o que tem a melhor qualidade intelectual ou artística, e sim o que capta a oportunidade, o espírito do tempo. Além disso, é inegável que há uma certa mesquinharia, uma certa mediocridade, na aplicação das multas e no controle do voto realmente emitido. Há casos em que uma medida pode ser até correta, em seu espírito, mas sua execução – e sobretudo as punições por sua infração – assumem um sentido menos defensável: esse está-se tornando o caso do voto obrigatório.
O que devemos fazer, então, é indicar alguns pontos básicos que devem ser respeitados, quer se mantenha o voto obrigatório, quer ele seja abolido. Na verdade, os problemas que apontamos ao longo do presente artigo podem ocorrer em qualquer regime de voto, obrigatório ou facultativo: eles são reduzidos ou abafados pela imposição legal do sufrágio, mas não deixam de existir e, por isso mesmo, devem ser enfrentados. Caso se torne facultativo o voto, a questão será evitar que a mudança legal traga alguns efeitos perversos que já mencionamos.
O ponto fundamental é que devemos combater a visão dos direitos políticos como liberdade privada. Eles pertencem à dimensão pública. Melhor ainda: sua essência é de ordem constitucional. Isso significa que não são questão apenas de foro íntimo. Mas não basta que não o sejam, em si, objetivamente. É preciso que a sociedade como um todo os perceba como constituindo uma esfera de relacionamento público. Somente os percebendo como públicos, é que os cidadãos agirão em conseqüência, isto é, sairão de suas cascas privadas para participar da res publica, da coisa pública, da república.
Daqui se seguem pelo menos duas conseqüências importantes.
A primeira é que devemos monitorar constantemente a maneira como se vota e sobretudo como não se vota – ou seja, devemos estudar sempre quais são os grupos sociais que votam abaixo da média nacional. Toda vez que um descompasso se manifestar, é o caso de ver o que o determina e como saná-lo. E isso porque, se a justificação para a não-obrigatoriedade do voto se baseia na liberdade individual de não votar, sempre que a ausência ao voto deixa de ser livre e individual, para se tornar um constrangimento (no sentido que a sociologia dá ao termo desde Durkheim) de ordem coletiva, então se mostra preciso intervir, com políticas públicas, a fim de assegurar que se trate, mesmo, de um direito de que cada um escolhe valer-se ou não. Na verdade, a intervenção do Estado ou da sociedade aqui se justificará justamente como salvaguarda para o direito privado de se manifestar até mesmo pela não manifestação.
Há diversos modos de promover essa ação em favor da cidadania deficitária. Como a escassez de cidadania nunca se manifesta por um só indicador, mas reúne vários, promover o voto dos que não votam certamente irá junto com a solução de outras carências sociais. Mas é fundamental que se defina como fazer isso, porque sem esse acompanhamento da abstenção involuntária (a abstenção coletiva) a supressão da obrigatoriedade do voto pode se tornar um instrumento de exclusão social, como nos Estados Unidos, e não de liberdade individual. Campanhas de alistamento de quem ainda não é eleitor, de registro civil para as pessoas que não têm nem certidão de nascimento, de afirmação da dignidade dos excluídos, fazem parte desse rol de políticas sem as quais o voto facultativo pode trazer resultados muito perversos.
A segunda conseqüência é que a obrigação ética de participar da coisa pública deve ser acentuada. Eliminar a imposição legal somente se justifica se envidarmos todos os esforços para reforçar o caráter moral que há no dever de votar. Hoje, com efeito, pode até mesmo ser que a determinação legal reduza o sentido ético que há em dever, cada um de nós, votar – e, mais que votar, participar ativamente dos assuntos públicos, associando-se, manifestando-se, encarregando-se de tarefas sociais. O aspecto notarial ou cartorial de que se reveste o day after do não-voto acabou por obscurecer o sentido antes de mais nada ético, de cada um assumir sua responsabilidade pelo quinhão que tem no tecido social. Como a lei manda, não precisaríamos assumir a obrigação em nossas consciências. Portanto, o que temos diante de nós é uma tarefa importante. Sem o caráter legal, a obrigação espiritual deve ser reforçada – mas, justamente porque não haverá mais seu travesti, que é a multa, ela pode assumir melhor seu caráter ético.
Agora, isso exige uma educação cívica em regra, cujos pilares devem ser três. Primeiro, a escola. Devemos definir nos programas, pelo menos de segundo grau, um espaço de responsabilização social, de explicação do papel do voto na democracia e – mais que tudo isso – de educação para a participação política, que não se esgota num sufrágio emitido a cada dois anos na urna eletrônica. Segundo, a mídia. Seria importante convencer os jornais e a mídia eletrônica a falar em participação política. O difícil, aqui, é dar vigor a esse discurso sem o partidarizar – mas, se isso é difícil, não é impossível. Terceiro, os próprios partidos. Se eles se tornarem responsáveis não só pelo conteúdo do voto, mas pela própria persuasão do eleitor a votar, um passo será dado.
É fundamental, quer se tenda à abolição do voto obrigatório, quer ele seja mantido, que não haja formas extra-legais de compelir os mais pobres ou dependentes a ir votar. O enfraquecimento dessas pressões dos poderosos já está ocorrendo e provavelmente aumentará, com o gradual avanço da sociedade brasileira no rumo da democracia, em decorrência de uma maior complexidade nas relações sociais e mesmo pessoais. Mas é preciso reforçar esse processo. Aqui, o papel da educação é decisivo. Notam-se, aliás, avanços nesse rumo desde o fim da ditadura militar. Quando mandavam os quartéis, não éramos responsáveis pelos destinos que o país tomava. Por sinal, na longa tradição autoritária que praticamente coincide com nossos quinhentos anos de história, raras foram as decisões adotadas de maneira realmente democrática. Ora, isso nos levava a uma vaga noção de que o poder era como se fosse exercido por marcianos. Um traço claríssimo disso é a tendência, que subsiste mas espero venha a terminar, de atribuir as deliberações de qualquer poder a um sujeito oculto na terceira pessoa do plural – um "eles" que nem mesmo aparece enquanto eles: Proibiram tal coisa, fecharam tal rua. É o on francês, o man alemão, o nosso –se, mas que assume a grandeza de um poder tanto maior quanto menos identificável, ou menos nomeável11. Pois bem, anos e anos de eleições razoavelmente livres foram mostrando que o cidadão não tem mais como lançar para longe de si sua responsabilidade pelas escolhas a seu alcance.
Mas, se vemos afastar-se de nós o paternalismo, o coronelismo, em suma, as formas tradicionais de opressão, ao mesmo tempo crescem a indiferença, o descaso pela coisa pública – e o risco do voto facultativo é que ele endosse ou favoreça esse alheamento já tão estimulado pelos avanços da vida privada, em detrimento da coletiva. Sem dúvida, a existência de um imperativo legal não basta para deter esse movimento; nem é a penalidade prevista em lei o melhor meio para reverter esse esvaziamento da vida pública; mas é esse perigo o que devemos ter mais em mente. O poder dos coronéis é coisa do passado; quando subsiste, é relíquia, quase em processo de tombamento cultural. O que hoje ameaça a qualidade do voto é outra coisa. Não é mais a pressão externa, quase física (a surra no opositor), é a indiferença interna, o desinteresse pelo espaço público, o investimento exclusivo no mundo privado ou na esfera íntima, a crença de que a vida social não nos enriquece mas só os contatos imediatos de primeiro e segundo grau. Com ou sem a obrigatoriedade do voto, o fundamental é que haja uma consciência maior, na sociedade, da idéia de que a cidadania não se terceiriza. É preciso acentuar a responsabilidade social de cada cidadão. Esse é o espírito republicano, o da participação do maior número de pessoas na construção da casa comum a todos.
NOTAS
1 A infidelidade partidária aparece, nas conversas entre pessoas que comentam o sistema eleitoral e o funcionamento das instituições representativas, como um ponto bastante importante, porque atestaria a indecência de muitos políticos.
1 A infidelidade partidária aparece, nas conversas entre pessoas que comentam o sistema eleitoral e o funcionamento das instituições representativas, como um ponto bastante importante, porque atestaria a indecência de muitos políticos.
2 Em duas ocasiões, por ter viajado ao exterior em período de eleições, precisei ir ao cartório e conversei com as pessoas que aguardavam o atendimento. As queixas eram generalizadas. O valor da multa é baixo e muitas vezes é anistiado quem deixou de regularizar sua situação, o que por sua vez causava vários tipos de desconforto: por que tanta burocracia para recolher uns poucos reais? por que a humilhação de converter o cidadão em devedor? por que gastar dinheiro público mantendo uma estrutura de controle sobre os cidadãos?
3 Utilizei os termos "voto facultativo", "programa" e "partidos"; só encontrei o apoio programático a essa mudança no Partido Verde e no Federalista. Algumas lideranças do PT também o favorecem.
4 Não consta entre os vinte e nove partidos com existência legal, segundo o site do Tribunal Superior Eeitoral, atualizado em 24 de fevereiro de 2003.
5 Um prefeito interino de São Paulo, pelo PMDB – o primeiro a não ser nomeado pela ditadura, em começos de 1983, e que só exerceu o cargo por um ou dois meses – foi entrevistado na televisão sobre o que fazer diante das enchentes que alagavam a cidade. Sua resposta: mandar o socorro (uma ambulância, bombeiros) a cada lugar afetado. Não definiu nenhuma política abrangente: só casos.
6 Lembre-se uma propaganda divulgada quando o ditador Figueiredo foi operado do coração: uma homenagem, dizia-se, dos "amigos do peito" do presidente. Embora a intenção pudesse ser humana, unindo coração e peito, era tal o desprestígio da ditadura – e a imagem de seu favorecimento aos amigos – que a publicidade teve o efeito contrário do desejado.
7 Como o voto distrital também é muito defendido entre nós, é bom lembrar seus principais problemas:
1) o recorte dos distritos se presta a muita manipulação política, a tal ponto que se cunhou nos Estados Unidos a expressão "jerrymandering" para designá-la;
2) enquanto no sistema proporcional praticamente todos os votos emitidos são computados para a atribuição de cadeiras parlamentares, no distrital os sufrágios dos derrotados se esterilizam, não gerando representação – o que é injusto e causa irritação no eleitor, que sente seu voto desperdiçado.
8 Dito gratuito, porque na verdade a União compensa as emissoras pelo valor comercial do tempo utilizado – de modo que a sociedade paga por ele.
9 Na França, de todos os países do mundo aquele que tem mais sólida convicção republicana e que a construiu com base na educação universal e obrigatória, o debate sobre o direito de muçulmanas integristas portarem um véu teve sentido dentro desta preocupação. Uma coisa é uma pessoa adulta decidir a fé de sua preferência. Outra coisa é a família impedir o educando de se expor a um elenco mínimo (na verdade, bastante rico) de elementos que o capacitem a captar a diversidade do mundo e a efetuar, depois, suas escolhas pessoais.
10 Em artigo de 20 de dezembro de 1993, na segunda página d’O Estado de S. Paulo. Algumas das idéias que se seguem eu publiquei pela primeira vez numa crítica a seu artigo, no mesmo local ("Sobre o voto obrigatório", 10 de janeiro de 1994).
Talvez haja um elemento quase místico aí. Porque, de duas uma. Ou é porque não sabemos quem realmente decide – ou porque sabemos, mas receamos pronunciar seu nome terrível. A primeira hipótese parece mais razoável e mais racional – o que me leva a suspeitar que a segunda possa ser a mais rica. Isso porque, nessas matérias, está em jogo um inconsciente social e político, do qual geralmente pouco conhecemos.
Comentário do Jornal dos Amigos
A Lei Orgânica dos Partidos (Lei N.º 9.096, de 19 de setembro de 1995, que dispõe sobre partidos políticos, regulamenta os arts. 14 e 17, § 3°, inciso V, da Constituição Federal) fomenta o atual modelo político do país. É essa lei que torna o Partido Verde (referência do articulista) um dos partidos mais antidemocráticos do país, pois seu regime de gestão é por Comissões Provisórias, e não por diretórios eleitos pela militância. As Comissões Provisórias são nomeadas e desfeitas ao sabor do dirigente máximo. Atualmente só dois partidos no País(por incrível que possa parecer) são democráticos: o PT e o PMDB, por possuírem a maioria de diretórios constituídos com voto direto de seus filiados. Salvo melhor juízo. Sobre o voto obrigatório, melhor seria o voto facultativo para se tornar um direito, livrando-nos de uma obrigação.
Por Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, em que se tornou doutor após defender mestrado na Sorbonne. Dedica-se à análise de temas como o caráter teatral da representação política, a idéia de revolução, a democracia, a república, a cultura política brasileira. Entre suas obras destacam-se "A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil" (2000, Prêmio Jabuti de 2001) e "A universidade e a vida atual - Fellini não via filmes" (2003)
Fonte:
Comentário do Jornal dos Amigos
A Lei Orgânica dos Partidos (Lei N.º 9.096, de 19 de setembro de 1995, que dispõe sobre partidos políticos, regulamenta os arts. 14 e 17, § 3°, inciso V, da Constituição Federal) fomenta o atual modelo político do país. É essa lei que torna o Partido Verde (referência do articulista) um dos partidos mais antidemocráticos do país, pois seu regime de gestão é por Comissões Provisórias, e não por diretórios eleitos pela militância. As Comissões Provisórias são nomeadas e desfeitas ao sabor do dirigente máximo. Atualmente só dois partidos no País(por incrível que possa parecer) são democráticos: o PT e o PMDB, por possuírem a maioria de diretórios constituídos com voto direto de seus filiados. Salvo melhor juízo. Sobre o voto obrigatório, melhor seria o voto facultativo para se tornar um direito, livrando-nos de uma obrigação.
Por Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, em que se tornou doutor após defender mestrado na Sorbonne. Dedica-se à análise de temas como o caráter teatral da representação política, a idéia de revolução, a democracia, a república, a cultura política brasileira. Entre suas obras destacam-se "A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil" (2000, Prêmio Jabuti de 2001) e "A universidade e a vida atual - Fellini não via filmes" (2003)
Fonte:
Nenhum comentário:
Postar um comentário